A voz e a sabedoria
- Por Rogério Romano Bonato –
A voz é a base do universo radiofônico; é ela que molda a programação, narra os noticiários, partidas esportivas, apresenta as canções, nos diz se haverá chuva ou sol; pontua os segundos, minutos e horas. Sem a voz, possivelmente a sensibilidade não seria tão expressada, além da maneira como foi escrita ou pensada. E há um detalhe: sem a organização do pensamento, seja mental, espiritual ou redacional, de nada adiantaria a voz; seriam palavras ao vento, e, se perderiam. E é neste contexto que lembro o meu querido amigo Ennes Mendes da Rocha, um homem que fazia valer a voz, depois do pensamento, sem desperdiçar um suspiro. Foi extremamente compreensível em todos os sentidos humanos, da praticidade à emoção; foi além do mais, um grande professor, paciente além da conta com os alunos ao longo toda a sua brilhante vida.
O Anibal Abbate Soley foi até a Vila Yolanda e buzinou o seu potente Camaro V8 em frente ao camping do Alberto Koelbl, gerenciado pelo Oscar Alliana, onde fiquei hospedado logo que cheguei em Foz, em 1980. Algo assim, acontecer logo na segunda-feira, de manhã, só podia dar grande confusão, imagina? Enfim, o Anibal me deixou na porta da Rádio Cultura, na Rua D. Pedro II, anexo ao antigo Hotel Cassino. Depois de uma rápida conversa com o Toninho Cirillo, ele mesmo atravessou a recepção da emissora, e me conduziu até onde ficava o gerente, o professor Ennes. Foi no dia 15 de outubro, uma quarta-feira.
As missões eram simples: trabalhar na redação com o Selmo Jandir Aragão, onde eu poderia também ocupar as máquinas de escrever e o telex, para corresponder com os jornais que me enviaram até Foz, e, na parte da tarde, juntamente com o Celso Rios, avançar na programação de FM. Bom, trabalhar com o Aragão não era uma missão assim tão simples, como acabei de mencionar, mas foi um tempo que marcou a minha vida em todos os aspectos, a começar pela cobertura dos momentos mais decisivos de Itaipu e da nova Foz do Iguaçu que surgia.
A Rádio Cultura era, sem dúvidas, o veículo mais importante da cidade; não havia emissoras de televisão e tampouco jornais diários. Tudo acontecia lá. A programação era diversificada, iniciava com o Compadre Santana, depois, o noticiário das 8h, apresentado pelo Ennes, Anésio Gonçalves ou Oliveira Júnior, que depois ficava no estúdio praticamente a manhã toda; o radiojornalismo assumia ao meio-dia; Salete Siqueira apresentava os programas vespertinos; infalivelmente acontecia a “Ave Maria”, pontualmente às 18 horas e a programação se encerrava com o Ferreira Júnior. A cobertura dos eventos era frenética, ocorrendo a todo o instante; foram anos gloriosos!
E com o tempo, fui me aproximando de Ennes, um homem muito organizado, leitor de todas as informações que lhe chegavam, sempre paciente, com seu andar compassado e expressões de ânimo; uma forte presença intelectual. Não demorou, ele entrou para a política e presidiu o Legislativo; era também bastante ligado às casas maçônicas, e, uma coisa que poucos sabem: foi um exímio violonista clássico. Amava a música. Um dia, do nada, bem no meio de uma roda de viola ele agarrou um instrumento e executou o “Bolero de Ravel” com primazia. Foi embaixo do parreiral que havia na residência de Maeli e Narciso Valiatti.
Sei dizer que dávamos muito trabalho ao Ennes, com as nossas ideias revolucionárias, sempre querendo transformar o rádio em outra coisa. Uma coisa que não poderia ser. Eu, particularmente quase o matei bem antes do tempo, quando apareci “na rádio” como Geraldo Vandré, quando era proibido até mesmo falar seu nome. Ennes chegou ao estúdio e não sábia o que fazer, pois sofrera com os rigores da censura. Acabou deixando a entrevista rolar e mais tarde se confessou fã do artista, engrossando o bico dos militares na fronteira. O pato fui eu quem pagou, mas com “traquinice e safadeza”, disse Chico de Alencar em minha defesa. Mas este foi apenas um episódio; há muitos outros e que um dia relembrarei com imenso prazer.
Em toda a minha vida, digo, aos 65 anos, tive uma porção de amigos; uns filósofos outros bêbados, uns malucos outros professorais, mas tenho a honra de revelar que foram apenas dois, os conselheiros. Para as questões da alma, as dúvidas os sentimentos, havia os Padre Germano Lauck. Já, para os problemas, encrencas, discussões, incompreensões sociais e os sustos que a vida nos prega, a solução era achar o Ennes, onde estivesse. Logo, tenho licença para escrever sobre ele e sua enorme compreensão de mundo, pessoas, a Natureza ambiental e de todo o resto, e de que maneira uma coisa sempre encaixava na outra, além dos derradeiros desencaixes.
Nesta quarta-feira pela manhã, em troca de mensagens com o Vinícius Ferreira, sempre uma testemunha inconteste das minhas lembranças, relatei os níveis de depressão atingidos toda a vez que um amigo se vai, por meio desse ato de mesclar as lembranças, sempre contagiadas de emoção. Uma coisa é redigir um memorial, com a exatidão cronológica da existência; outra é revirar a memória, sabendo o quanto essas pessoas foram importantes e influíram, nos tornando seres melhores, prontos para continuar o caminho, mesmo que a cada dia mais sozinhos.
Quero deixar um abraço fraterno, de tristeza e saudade aos familiares, pessoas que habitam o meu coração por quase meio século e que espero, consigam superar a dor e a ausência de alguém tão especial, como foi o Ennes Mendes da Rocha.