O que mais escrever sobre a Canja do Galo Inácio?
Por Rogério Romano Bonato
Lá se vão 24 anos de um evento diferente de tudo o que imaginei fazer na vida. Pode ser, foi a coisa mais importante que eu tenha feito. Se for por aí, há muito ainda para escrever. Com a permissão dos leitores, publicarei vários textos relembrando a Canja, como nasceu e se faz até hoje presente, ajudando a quem precisa.
Vamos começar o que seria um primeiro capítulo assim: não fiz sozinho, diga-se, e, não há o sentido de pertencimento no exercício de empregar o verbo fazer; mas não foi uma empreitada simples. Recordo bem como o assunto iniciou e ao tentar explicá-lo, as pessoas balançavam a cabeça negativamente. Pudera, como alguém fazer uma canja, uma sopa quente, debaixo de um calor de 45 graus, no Verão e em tempos de Carnaval? Não seria algo sano.
Relembrando:
O Carnaval de Foz havia murchado. Sâmis da Silva assumiu devolvendo o evento no centro da cidade, e, em cima do laço. Álvaro Martins tratou de reestruturar o Bloco Meninas Veneno, a Fundação Cultural começou a orçar bandas, palcos e a estrutura de atendimento. O prefeito ligou pedindo a colaboração e de preferência com algo novo, um diferencial e depois de matutar, acreditei que a canja ajudaria a revigorar a festa e acalorar um pouco a quem necessitasse.
Explico: acontece que canja e Carnaval sempre estiveram próximos, desde os primórdios; a iguaria era servida depois dos bailes nos salões e clubes. Em Foz do Iguaçu, antes do dia raiar, os foliões procuravam o antigo “Restaurante Coluna” e a intenção era repor as energias. Lá serviam uma tradicional canja, muito bem preparada lembro.
Mas, realizar o alimento para milhares de pessoas, em meio à folia, além de ser algo inédito, necessitaria empenho, voluntários, informação, além do mais, organização e segurança, sobretudo em razão manuseio de alimento, fogareiros, botijões de gás e gente indo de um lado ao outro.
E como realizar o preparo de milhares de porções de sopa? Como conseguir os produtos, divulgar o evento, encontrar colaboradores, servir, higienizar? O que mais propor, para convencer a sociedade e encontrar o tal diferencial?
Aos poucos as ideias foram clareando. Já havia o ponto chave, a canja. O segundo plano foi pensar em comercializar o produto e reverter a renda, o que seria bem simpático. À época, entidade voltadas para a infância passavam um perrengue e foi conversando com Juliano Inzis e o padre Germano Lauck que surgiu um modus operandi de escolher as entidades, até porque as congregações sabiam bem das prioridades.
Fui com Wilson Stank Batista e Ennes Mendes da Rocha visitar o padre Germano e a conversa não iniciou em águas tranquilas. Ele ouvia atentamente a proposta, mas virava os olhinhos a cada vez que a palavra Carnaval era pronunciada. Adiante, depois de um certo silêncio disse: “evento envolvendo entidade carente, com o apoio da igreja católica, no Carnaval? Isso só poderia sair dessa tua cabeça e acontecer em cidade como Foz do Iguaçu”. Vivemos um baita impasse, com ares de desconforto, mas o alívio foi geral quando Germano disse que até concordaria, mas com restrições. Incumbiu-nos de: 1 – Falar com o bispo diocesano. 2 – Doar a arrecadação integralmente, sem descontar absolutamente nada para a entidade que ele escolheria. 3 – Ele em pessoa, provaria a Canja antes de ser servida e aprovaria o resultado. Evidentemente concordamos com o pedido.
Dom Laurindo estava lendo o jornal quando chegamos para tratar do assunto. Curiosamente ele vestia uma camiseta do Grêmio e estava ao lado do jardim, na casa episcopal. “Já sei do assunto, o padre Germano fez um relatório agora pouco ao telefone. Se realmente há chance de ajudar entidades com algo assim, não há como deixar de apoiar. Além do mais foi-se o tempo das festas pagãs, isso que fique lá na Idade Média.” Disse. Aparentemente a missão mais difícil estava solucionada.
O passo a seguir foi criar a receita e sair pedindo ingredientes. O resultado foi surpreendente, muito além do esperado e até mesmo do necessário. Em poucos dias a notícia se espalhou e recebíamos doações de todos os lados, de mercadinhos de bairros, criadores de frangos, hortas comunitárias, panificadoras, até que a rede de supermercados Super Muffato abraçasse a demanda. É importante destacar o empenho de Clauri Ferrari e também de Ederson Muffato, em pessoa; ele analisou o projeto e concedeu apoio da marca e o fornecimento dos alimentos.
Em uma das idas ao Muffato JK, o Ferrari perguntou: “essa canja tem nome”. A dúvida surgiu com a necessidade de enviar-lhe um ofício. O Ennes me olhou e ficou esperando resposta. Viajei e em segundos, e, sem muito dar explicações, disse: “Canja do Galo Inácio” e todos caíram no riso. O galo era um personagem que eu desenhava e, assinava (foto). Era um bicho contestador, vivia bicando e dando esporadas nos políticos, fruto das charges e de certa forma conhecido à época. Mas o que melhor encaixava era o fato de poder ser cozinhado no Carnaval e em benefício de outros. De pronto o nome pegou o que me obrigou anos mais tarde repassá-lo exclusivamente ao evento por meio de certidão registrada em cartório.
Identidade
A canja começou a crescer, aparecer e faltava uma identidade visual de peso. Na época eu estava encampando uma guerra contra as notícias falsas sobre terrorismo na tríplice fronteira e articulava desmentidos, informações, criando conteúdo para desarmar o campo minado que cercava a cidade, como fosse um ninho de terroristas internacionais. Isso que prejudicava muito o Turismo. Na articulação, falava diariamente com jornalistas nos grandes centros e escrevia semanalmente coluna para O Pasquim 21, editado pelos irmãos Zélio e Ziraldo Pinto.
O jornal concentrava os mais notáveis articulistas e cartunistas brasileiros, do calibre de Fausto Wolf, Nelson Rodrigues Filho, Arthur Poerner, Marcelo Auler, Claudio Cordovil, Audir Blanc, Alcione Araújo, Jesus Chediak e, estrelas da charge como Chico e Paulo Caruso, Aroeira, Santiado, Lan, Jota, Kemp, Cláudio, Quinho, Dálcio e várias celebridades do traço. Mesmo com um arsenal assim, pedi ao Millor Fernandes o desenho para a primeira canja, ao encontra-lo em uma livraria no Rio de Janeiro.
Juliano Inzis e Germano Lauck informaram que o Centro de Nutrição Infantil merecia uma ajuda e foi assim o escolhido para a primeira edição da Canja do Galo Inácio. E no dia 27 de fevereiro de 2001, mais de 300 pessoas estavam diretamente envolvidas no preparo da Canja. Cerca de uma tonelada de alimentos foram manuseados, com boa parte destinada ao beneficiado. Por volta das 18 horas, o padre Germano, patrono do evento, provou a primeira canja, telefonou e disse: “querem matar o padre? A canja está muito salgada, precisam resolver isso”.
Na correria e inexperiência, com tanta gente querendo ajudar, cada um que passava colocava um pouco de sal no primeiro caldeirão, depois colocado de lado e o conteúdo aos poucos incrementando as outras panelas, corrigindo o problema. O resultado foi uma canja deliciosa. Estima-se que mais de dez mil porções foram servidas entre as comercializadas e as doadas aos carentes. O excedente foi levado ao Lar dos Velhinhos na manhã do dia seguinte, bem no momento em que o apresentador do telejornal Bom Dia Brasil, Renato Machado anunciou a reportagem do evento, segundo ele, encerrando o carnaval juntamente com o Bloco Bacalhau do Batata, em Olinda, Pernambuco. Os créditos do noticioso, diga-se, correram em cima dos iguaçuenses lavando as panelas.
Como escrevi no início deste texto, se houver mais a lembrar sobre a Canja do Galo Inácio, que isso seja feito com justeza, porque muitas pessoas ajudaram ela a acontecer. Nos primeiros cinco anos, o evento foi organizado por colaboradores. Em 2006, por iniciativa de Nanci Rafagnin Andreola, o PROVOPAR assumiu a responsabilidade de realização do evento, e em 2018, a canja foi para as mãos dedicadas dos rotarianos. É o Rotary Foz do Iguaçu Grande Lago a entidade provedora e curadora da Canja do Galo Inácio.