O velório
*Carlos Galetti
Até no dia do enterro chegaria atrasado, tal qual foi ao longo da vida, sempre atrasado e pouco assíduo. Passou pela vida sem marcar posição, como dizia minha avó, não fedia e nem cheirava.
Seu velório tinha meia dúzia de gatos pingados, parece que ninguém deu por falta, sem consideração, sem devoção, sem motivação. A empresa alugou um ônibus, incentivou o comparecimento, mas, podem acreditar, teve gente que preferiu ficar trabalhando.
Era invisível, como sua família. Mulher e três filhos, um rapaz e duas meninas. Até a emoção da família era inexpressiva, deixando de contagiar os presentes. Lágrimas emboloradas, comentários furtivos, sentimentos não convincentes.
Nem era um velório divertido, se me perguntarem direi que existe velório divertido, já fui a alguns. Os conhecidos se juntam e vão ao bar mais próximo para um bate papo, permanecendo até o enterro.
Saímos do bar e fomos velar o morto, aumentara o número de adeptos, já era uma dúzia ou um pouco mais. Foi quando ela entrou, as vozes silenciaram, os olhares se voltaram, nem uma mosca se ouvia.
Aproximou-se dos parentes mais chegados, os cumprimentou, apresentando suas condolências. Mas não disse quem era, deixando todos em incômoda curiosidade. Não se identificara nem para os entristecidos parentes do morto.
Sentou-se a uma distância conveniente dos demais, permaneceu com os óculos escuros. Vestia roupas sóbrias de cores também sóbrias. Seu comportamento era inalterado, traduzindo segurança, mas não combinava com o ambiente, faltava ajuste perfeito, como quando não acontece a sintonia fina.
Como quando um personagem de um quadro aparece em outro, um personagem de “Rembrant” num cubismo de “Picasso”. Era o que acontecia, quase fui lhe perguntar se estaria no enterro certo.
Amante do morto não poderia ser, cumprimentara os parentes diretos, seria muita cara de pau. Velório enganado também não tinha possibilidade, havia seis capelas, só uma ocupada, a nossa. Cheguei a pensar naquela festa do futebol, quando a torcida, em maioria no Maracanã, grita: – Hu! Hu! O Maraca é nosso!
Depois a coroa era um filé, amante de um cara sem sal igual ao morto, impossível. Outra, o falecido era ruim de grana, jamais bancaria aquela criatura, muita areia para o seu caminhão.
Com todas estas faltas de predicados, melhor ser logo enterrado. O horário chegou, últimas orações, caixão fechado, cortejo segue lentamente. Um coveiro empurra o carrinho até o cemitério, pouca distância, seguem os parentes mais próximos, os conhecidos, os tolerantes, os curiosos, os obituários de plantão.
Acreditem, mas tem gente que gosta de cemitério, de toda a parafernália que envolve mortos.
Olhei pra trás e vi a mulher misteriosa, parecia maior e mais misteriosa. Notei que ficava cada vez mais longe. Em determinado momento vi que desviava de uma sepultura, sumiu atrás do imponente jazigo, não aparecendo do outro lado.
Gelei, tive vontade de chamar a atenção de todos, mas ninguém acreditaria. Abandonei o cortejo e segui até o tal mausoléu. Nem sinal da mulher, procurei em todas as direções, mas sem sucesso.
Fiquei parado um tempo, até que algo chamou minha atenção, era a fotografia num túmulo, onde a mulher figurava com a mesma roupa.
Arrepio total, voltei correndo para o cortejo, o morto chegava ao seu destino final. Tomara não fique com a mania de acompanhar enterros, tal qual a fulana.
Ainda bem que acabou, vou correr daqui. Um amigo me chamou pra saideira, tô fora!
*Carlos A. M. Galetti é coronel da reserva do Exército, foi comandante do 34o Batalhão de Infantaria Motorizado. Atualmente é empresário no ramo de segurança, sendo sócio proprietário do Grupo Iguasseg.
Vivendo em Foz já há mais de 20 anos, veio do Rio de Janeiro, sua terra natal, no ano de 1999, para assumir o comando do batalhão.