É texto longo, que pode ser saboreado aos poucos. E ignore o elogio inicial a um dos editores deste blog, é apenas generosidade do amigo. A importância deste artigo vai além da opinião dele, pois traz dados sobre os autores do grafite, que desconhecíamos, e outras informações.
Sem contar o belo título. Uma exortação a um mundo (tão distante de nós, tão utópico) que não precise de barreiras que nos separem, mas de poesias que nos unam.
À leitura:
Mais poesia, menos muros
Paulino Motter
Meu amigo Cláudio Dalla Benetta, jornalista discreto e brilhante, suscitou uma salutar polêmica ao registrar, com pesar, o recente apagamento dos grafites com versos de Leminski que por quase cinco anos ocuparam vistosamente o muro da esquina das avenidas República Argentina e Paraná, na região central de Foz do Iguaçu.
Eram remanescentes de intervenções realizadas em julho de 2013, no contexto da exposição Múltiplo Leminski, no Ecomuseu de Itaipu.
A Esquina de Leminski se incorporou à paisagem urbana como resultado não previsto de um projeto cultural coletivo que incluiu a realização de uma espécie de oficina de grafite, com a participação de grande número de estudantes da Unila e voluntários.
Esta ação juntou o talento de grafiteiros locais e de fora, entre eles os curitibanos Artur Navarro, Rafael Tavares e Marciel Conrado e o paulistano Paulo Ito, cujo trabalho conquistou nos últimos anos reconhecimento internacional.
Marciel Conrado e Paulo Ito também assinaram dois belos grafites nas paredes internas do Ecomuseu, integrados à exposição.
Ao contrário dos grafites realizados no muro do Hotel Bella Itália, aqueles tiveram uma vida breve e, lamentavelmente, foram apagados imediatamente após a desmontagem da exposição. Também foi feito um grafite na fachada de um dos blocos do PTI, que permaneceu lá por um largo período.
O fato de eu não mencionar pelo nome nenhum grafiteiro local me permite fazer uma autocrítica, ainda que extemporânea: como um dos articuladores do projeto Múltiplo Leminski em Foz do Iguaçu, eu reconheço que falhamos em não termos construído um enlace mais efetivo com os artistas da cidade.
Algo que certamente será corrigido agora, com a iniciativa liderada pela Fundação Cultural de devolver a poesia de Leminski às ruas da cidade.
O que eu me recordo vivamente é que naquele sábado, 7 de julho de 2013, houve um grande burburinho na esquina das avenidas Paraná e República Argentina. A realização de uma intervenção artística num ponto estratégico da cidade mostrou-se uma eficiente estratégia de divulgação da exposição. E, como ficaria comprovado pela sua resiliência, aquele mural ganharia vida própria.
Durante a jornada de grafitagem, aconteceu até uma inusitada comemoração de rua, com direito a torta e refrigerante, do aniversário de uma estudante argentina da Unila.
Naquele momento, não poderíamos imaginar que Foz do Iguaçu acolheria Leminski com tanto carinho e afeição. Nem muito menos que se estabeleceria uma relação que transcenderia a longa sobrevida daqueles grafites, concebidos inicialmente para os três meses da exposição.
Agora que apagaram tudo e cobriram tudo de verde, ouvem-se lamentos nostálgicos. Fez muito bem este Blog em repercutir o súbito desaparecimento do que já havia se tornado um referente na cenografia urbana de Foz do Iguaçu. De repente, notou-se que algo estava ausente.
O muro poético mimetizou o verde eclético do seu entorno. Ao calar a poesia, restabeleceu-se a sua verdadeira serventia: proteger o patrimônio privado. Conforme bem reconheceu o empresário Marcelo Valente, “a cidade até parece ter imaginado que aquele espaço era público”. E o foi. E nestes anos todos, muita gente parou para ver e fotografar.
Mas, eu não vejo motivo para tristeza. A impermanência é inerente à natureza desta forma de arte de rua. Bem lembrou Benetta que o próprio Leminski concebia o grafite como uma “tatuagem provisória”. O que faltou acrescentar é que o poeta também versejou sobre o verde na original e capciosa letra da música Verdura, gravada por Caetano Veloso:
De repente
Me lembro do verde
A cor verde
A mais verde que existe
A cor mais alegre
A cor mais triste
O verde que vestes
O verde que vestiste
No dia em que te vi
No dia em que me viste
Quando eu estive em Foz do Iguaçu pela última vez, nos primeiros dias de outubro passado, observei com surpresa e satisfação que os grafites de 2013 continuavam lá, bem preservados. Foi um dos raros vestígios que eu encontrei de projetos e ações culturais com as quais tive algum envolvimento.
Em retrospecto, posso afirmar que nenhum trouxe maior gratificação pessoal e retorno institucional do que Múltiplo Leminski, que deixou um legado duradouro na cidade. Talvez porque a poesia anda mesmo em falta nestes tempos bicudos em que vivemos, ao passo que sobram muros.
A ressurgência de Leminski, quando já se avizinha o 30º aniversário da sua morte (1989), é um fenômeno atestado pelas sucessivas reedições de suas obras e pelo êxito da exposição itinerante, que já passou por uma dezena de cidades. Mas poucas acolheram com tanto entusiasmo como Foz do Iguaçu.
Mesmo correndo o risco de ser repetitivo, mais uma vez eu quero me valer da primorosa seleção feita por Cláudio Dalla Benetta, dando voz à desconcertante e presciente poética leminskiana:
Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
Todas, eu diria. Que graças tem a vida, sem um pouco de poesia? Este gênero literário – que eu reputo o mais acessível e, portanto, democrático – está para a cotidianidade árida como a chuva depois de uma longa estiagem. Traz ao espírito o alívio mágico de uma gota de colírio anestésico aplicada na retina lacerada por um mísero grão de areia.
A Esquina de Leminski de Foz do Iguaçu foi, por quatro anos e meio, uma dose diária de poesia, disponibilizada gratuitamente para os locais e visitantes. Os grafites poéticos ofereciam um lampejo estético aos motoristas e passageiros parados à espera do sinal verde no cruzamento entre as avenidas República Argentina e Paraná.
Agora uniformemente pintado de verde, tornou-se um muro qualquer, mudo e sem graça.
O que nos consola é saber que o poeta terá em breve outro lugar para continuar presente no cotidiano dos iguaçuenses. Leminski é o boa praça de quem a cidade não quer se separar.
*Paulino Motter, é jornalista. Morou em Foz do Iguaçu de 2010 a 2015 e criou laços com a cidade, onde nasceu sua filha caçula, Helena (2012).